quinta-feira, 13 de julho de 2017

Lembranças de Flávia Stein (Garcia)



Flávia Stein
Notas de : Da. Flávia da Silva Stein é filha de Bartholomeu e Doralice Stein e neta de Nicolau Stein

Em 1924, meu Pai mudou-se da Coxilha de S. Sebastião, hoje Torquato Severo1, onde nascemos: Maria, Tila, e eu, mais dois garotos que morreram pequenos, com poucos meses. Fomos morar nas Três Vendas, município de D. Pedrito, na divisa do Brasil com o Uruguai.

Era um lugar bonito, com vastas planícies onduladas em coxilhas, cobertas de vassoura (sarça). Matos não havia, queimava-se sarça ou coronilha, esterco de gado. Havia carne gorda, queijo, presuntos deliciosos e gajeta – bolacha d’água, dura que se quebrava com martelo e se comia a guisa de pão. O povo era hospitaleiro e amigo de “el doctor”. Lá o Pai trabalhava intensamente – houve naquela época a “bexiga negra” -, terrível epidemia que matou centenas de pessoas.

O Pai ia a lugares de nomes curiosos: Upamaroty, Taquarembó, Corrales, Corrientes e Rivera2. Nas Três Vendas morávamos na chácara do Dr. Cristiano Fischer3, casado com a D. Geraldina e pai da Ricardinha – nós as adorávamos. A chácara era linda – tinha flores e frutas, lá ficava o Vale dos Amores Perfeitos, todo perfume e encantamento. Naquela época havia revolução – as tropas acampavam na nossa chácara, nós íamos pousar muitas vezes na Guarda Uruguai, comandada pelo Capitão Américo Castilho. E me lembro da senhora dele dizendo para o filho: “Hamilton no hace ruído para el doctor”. 


Poesia feita em homenagem à Bartholomeu Stein 
Nessa época moramos também em Porto Alegre na Rua Sebastião Leão, no. 226, casa de propriedade do Pai. Morava conosco o Marcelino Monteiro, que era da confiança do Pai e nos acompanhava desde D. Pedrito.

Das Três Vendas fomos para Cruz Alta, onde morava a Tia Palmira. Lá nasceu a Helena, linda bonequinha loira que encantou a todos.


Pouco ficamos em Cruz Alta, logo fomos para Porto Alegre, deliciosa viagem de trem, em carro leito. Fomos morar na chácara da Tia Julieta, na Rua Guaracy. A chácara era enorme, tinha grande quantidade de árvores frutíferas, ia até a sanga e lá tínhamos até vaca, a Negrucha, que morreu de carbúnculo. O Pai queimou e enterrou a dita, nos explicou que carbúnculo era uma doença muito contagiosa. Anos depois morreu um rapaz de carbúnculo no Hospital de Rio Pardo.

Teresópolis, naquela época era calmo e bonito. Tinha uma lagoa na frente da SPAM4 atual, que ainda não existia. Tinha o Palacete do seu Luciano Junqueira, a chácara do Arcebispo, o Palacete dos Laporta, a chácara do Sr. Ramiro Souto. Já tinha bondes e, lá da chácara, se ouvia o barulho deles no fim da linha.

Nós íamos a pé para o colégio. Íamos de manhã, almoçávamos lá e voltávamos de tarde, com as filhas do seu Otacílio Ferreira. Nossa professora era a Madre Marcela (Irmãs do Sevigné).

Em 1926 fizemos a 1ª. Comunhão, no dia 5 de Setembro.
Helena no colo da mãe Doralice e Julieta (Lia) atrás. Na frente da esquerda para a direita, Flávia, Maria e Tila
No mesmo ano tivemos sarampo. Tila e Helena passaram muito mal, ficaram 9 dias sem fala. O Pai chamou para tratá-las o Dr. Carlos Hofmeister, veio balão de oxigênio, foi uma luta, mas graças a Deus elas se salvaram. Depois, o Pai comprou uma cabrita para elas tomarem leite, gordo e forte. Chamou-se a cabrita de Alfazema e nos acompanhou até o Capivari. Tila e Helena, com o leite forte, nutritivo e saudável ficaram fortes, sadias e molecas...

Quando morávamos na Chacrinha em Porto Alegre, tio Osvaldo, irmão da Mãe, que morou conosco em solteiro, teve pneumonia. Passou muito mal e o Pai ficou à cabeceira dele dia e noite, numa luta bárbara contra a terrível doença. Finalmente conseguiu salvá-lo. Mas a esposa dele, a Tia Elza enlouqueceu para sempre. Ficou 10 anos internada no Hospital S. Pedro, onde veio a falecer.

Foi um tempo de doença na família. O Lauro5, filho da Tia Helena, que cursava o Colégio Militar, teve tifo, naquela época uma doença muito grave, pois não havia antibióticos. O pai tratou com muito amor e com os recursos de que dispunha, conseguindo salvá-lo. Ele passou muito mal, perdeu até o cabelo com a febre muito elevada, era uma doença terrível e muito temida. Quando ele levantou, o Pai levou-o para nossa casa, para fortalecê-lo e curá-lo completamente.

Em fins de 1926, o Pai foi para Minas do Butiá, substituir o Dr. Fernando Ortiz Schneider, que veio defender tese em Porto Alegre. Lá, nós, egressas do Colégio, nos dedicamos de corpo e alma a brincar, foi uma beleza! Meus pais fizeram boas amizades lá. Depois nos mudamos para o Capivari6, em princípios de 1927.

E meu Pai foi exercer sua nobre profissão lá naquele rincão esquecido, nos confins do mundo. E nós, com 365 dias de férias, continuamos a brincar, felizes e satisfeitas, agora já em contato com a bela Natureza. Moramos, inicialmente, na Chacrinha, casa às margens do rio Capivari, quase no Passo Novo. Para nós, crianças, era um vidão: pescarias, banhos no arroio de águas limpinhas e mornas. Depois nos mudamos para a Fazenda da Boa Fé, de propriedade dos Azambuja.

A Boa Fé7 era um casarão enorme, construído em 1881 por Antônio Simões Pires. A casa tinha peças enormes, um grande pátio murado, enormes galpões e mangueiras (para o gado), grandes árvores (umbús). Depois moramos no Ranchão, era um rancho mesmo, paredes de barro, chão batido8, coberto de capim. Tinha uma enorme amoreira e vários pessegueiros e laranjeiras. 


Lá fizemos mudas para a casa nova. A Mãe fez viveiros de eucaliptos e de pessegueiros. A Flávia plantou um pé de pêssego em uma lata. Lá na casa nova o Pai colocou na terra e colhemos muitas frutas, saborosas e sadias!

Do Ranchão, fomos morar na casa que o Pai construiu no Passo do Canto. Era uma casa acolhedora e alegre. Tinha peças amplas e claras e também um belo arvoredo, frutas de todas as qualidades, coradas e cheirosas. Atravessava o arvoredo uma avenida de parreiras, enfeitada de roseiras, tudo muito limpo e cuidado. Logo no fim do parreiral tinha um poço, com 3 metros de profundidade. A gente pulava de um lado para o outro! Uma farra sem tamanho! Nossa casa tinha 4 quartos, a Farmácia, o Consultório, a grande varanda, a cozinha e a área da frente, toda rodeada de trepadeiras e, na frente, o jardim.

Na varanda estava o “etagére9”, onde a Mãe guardava os cristais e as porcelanas finas, a grande mesa de refeições, sempre coberta de fina toalha vermelha, a cadeira de balanço, a talha com água fresca, as colunas com vasos de flores, o grande espelho, tudo muito limpo e arrumado.

Na Farmácia, muitos frascos de remédios, injeções, e grandes vidros de Pastilhas de “Tolu10”, pastilhas para a gripe.

O Pai preparava, ele mesmo, os remédios, auxiliado pela Mãe; faziam poções, xaropes, infusões, pomadas, etc. E tinha ácidos e venenos. Tudo o Pai nos explicava para o que serviam, e quais os perigosos. No Consultório havia a mesa de operações e muitos instrumentos. A mesa era branca, de ferro esmaltada, bacia esmaltada, balde, atadura e um grande vidro de Lisoforme (Líquido de Dakim). Tinha uma janela para a rua e uma porta ligava a Farmácia misteriosa àquela sala de operações.11

Na cozinha, o grande fogão a lenha - branco com flores coloridas – onde se faziam quitutes, bolinhos de milho, o café sempre quentinho e o leite puro. Era quentinha e acolhedora, tinha um banco feito de árvore, coberto com pelego, ali eu me sentava, às vezes quietinha, ouvindo o Pai ler aqueles encantos escondidos nas páginas dos livros de história. Lembro de um livro que amei demais, vivi seus personagens e viajei com eles “Ao Longo do Amazonas 12”. Era um capítulo por dia, feito folhetim!

- Pai, como você deixou coisas boas, plantadas com carinho em nossos corações de menininhas! Ficaram a germinar em terra fértil! Quanta coisa boa nos mostraste, sempre com ar de brinquedo ou com jeito de farra!
Passeio - Menino (?), Bartholomeu, Doralice. menina de boina (?), um dos irmãos Paula Couto (Ruy?), Lia e menina (?)

A vida para nós era um Paraíso, banhos no arroio, onde se via o fundo. Os passeios no mato, a cata de frutas, guabijús, pitangas, coquinhos que podíamos comer a vontade, sem proibições, andávamos de pés descalços a olhar os ninhos de passarinhos e a brincar na chuva ou trepar nas árvores.
Capivari, ano de 1930.

Passo do Canto nos dias atuais
Obs: aqui eu acho que começa o relato de Helena Stein (Leitão)

O Pai sempre nos acompanhava, se não estava ocupado com seus doentes. A Mãe também ia conosco. E tínhamos fartura, carne de porco, toucinho defumado, lingüiça, morcilha, tudo feito com carinho e muito trabalho pelo Pai, pela Mãe e mais um monte de empregados. Isto o Pai tinha sempre! Bastante gente ao redor para servi-lo. Empregados para as lides do campo, empregados para a casa e ama para os filhos pequenos, mais os filhos dos empregados, que brincavam com a gente.
O Pai sempre gostou de casa farta, sacos de açúcar, arroz, feijão e farinha de todo o tipo. Colhíamos frutas fresquinhas e saborosas do nosso pomar que, bem cuidado, logo começou a produzir. As uvas eram perfumadas e as laranjeiras em flor eram uma orgia de abelhas e promessa de fartura.

Ali vivemos nossa infância no meio da natureza, admirando as carroças cheias de laranjas sendo despejadas em um quarto, indo até o teto. A turma fazia vinho de laranja, geléia e o que sobrava ia para adubar a horta. Na horta tinha moranguinhos, tomates, couve, nabo, cenoura, salsa, manjerona, espinafre, etc. Ah! Espinafre, como sofri para prender como engolir, sem o gosto me vir à boca! Lembro que no almoço o Pai fazia o nosso prato, meu e do Claudinho, como ele chamava. Feijão esmagado pacientemente, farinha, arroz e espinafre! O Francisco, um mulato que Pai trouxe de D. Pedrito ainda pequeno, fazia de tudo, era barbeiro, cozinheiro, tocava violão e nos mimava muito. A gente o chamava Chico. Ele cuidava para que nada acontecesse com os filhos do Dr., como ele chamava o Pai. Às vezes, e muitas, escondia do pai as nossas artes. Dizia: Deixa, Dr, que as crianças estão comigo, pode ir tranqüilo! E o Pai ia tranqüilo porque o nosso Chico era um amigo e um cão de guarda!

Nos dava bolinhos de coalhada, queijadinhas e banhos no arroio.

- Ah! vidinha boa, Chico, e tu estavas lá com a gente. Ainda está lá com a Mãe e o Pai, como sempre e estiveste, aos seus pés! Deus te proteja, meu amigo querido!

O pai levava pra gente bem cedinho (as madrugadas eram suas horas prediletas) o leite quentinho, recém tirado da vaca, um “revirado” (arroz e feijão misturados) quentinho, que a Mãe fazia e à noite, um torrão de açúcar mascavo! Às vezes levava umas pílulas, grandes e vermelhas (para vermes) que geralmente a gente cuspia fora, logo que ele ia embora!

Lá ia ele trabalhando, atendendo sua clientela e dando aula para nós, de noite, após a janta (de manhã, se era domingo) e nós progredindo nos estudos. Quando o Pai saía, nós estudávamos sozinhas na Farmácia. Lá o Pai tinha canetas de pena de aço, tinta Sardinha13. Cadernos, nós fazíamos de papel de embrulho e lápis era muito raro. Outras raridades: sabonete, pasta dental, calçados, tecidos, pentes, grampos e balas (estas) nunca!

O pai nos ensinava de tudo, até Francês, Alemão e Latim e nós íamos progredindo nos estudos. Líamos tudo o que aparecesse. Recebíamos jornais, a revista “Echo”, propaganda de laboratório e almanaque do Correio do Povo.


Dr Bartholomeu, Helena, Doralice, Claudio e Vicentina e Filhos

E, nas visitas dos primos do Colégio Militar, não fazíamos feio. Carlos, Adolpho e Ruy, filhos da Tia Julieta, irmã da Mãe, nos visitavam todos os verões. Era uma festa as chegadas dos guris da Tia Julieta, sempre recebidos com alegria e muito carinho por todos nós. Nos meses de verão o Pai organizava passeios a cavalo e os menores iam de carroça. A gente passava dias acampando nos matos, caçando, pescando, vendo e colhendo flores do campo, churasqueando, tocando violão, cantando serestas. Tínhamos muitos cavalos: Estrela, cavalo de montaria do Pai; gateado, pretinho, Baio, Malacara, Pangaré. O Pangaré era chucro e não deixava a gente montar! Tínhamos cabritos, ovelhas, vacas, bois, touro só tinha um e cachorros.
Irmãos Paula Couto em uniforme militar - Carlos, Ruy e Adoplpho

Respeito era o nome do nosso querido cão Pastor. Impunha respeito, daí seu nome, mas era manso e quando deram um tiro nele, nos feriram de morte, também!

O Sultão foi um cachorro que o Sílvio ganhou, era bem pequeno quando foi para a nossa casa, depois ficou grandão. Era branco com manchas castanhas nos lombo e focinho. O Sultão morreu bem velho.

Marcos era nosso peão caseiro, filho da “Sia” Chica, que também trabalhava de doméstica, só que era muita malcriada, mas muito trabalhadeira. Quando não estava “de lua” era boazinha. Usava umas meias compridas brancas e não as tirava nem no verão!

Quando o Marcos ia buscar as cartas, lá no seu Abady, voltava cantando sempre, sempre mais alto ao passar o Passo do Canto. Ele falou que cantava para espantar a “Mula sem Cabeça!” Dava às vezes grandes risadas sem que ninguém soubesse porque! Mais tarde soubemos: sua família fazia grandes e misteriosos roubos, roubavam até do Pai. Tudo sumia misteriosamente: o feijão sequinho, no ponto de colher, os repolhos que o Pai pensava em fazer chucrute, as frutas, etc. Quando descobriram eles foram obrigados a se mudar. Não pelo Pai, é claro que ele não faria isto, apesar de ser o mais prejudicado.

Flavia Stein Garcia aos 23 anos no salvo conduto usado pelos descendentes de alemães durante a segunda guerra mundial 

1 Estação S. Sebastião localiza-se no município de Dom Pedrito, a uns 35 quilômetros de Bagé. Embora o nome da estação férrea seja São Sebastião, a denominação correta da vila é Torquato Severo, que foi veterano da revolução de 93 e nasceu em Dom Pedrito.


2 Todos no Uruguai.


3 O farmacêutico Dr. Christiano Felippe Fischer foi um dos fundadores da Faculdade de Farmácia, de Porto Alegre, em 1895. Esta, logo após, fundiu-se com a de Medicina e deu origem a Faculdade de Medicina e Farmácia de Porto Alegre.


4 Sociedade Portoalegrense de Auxílio aos Necessitados, na Rua Nonoai.


5 Sobre o Lauro Stoll, vim a conhecer sua filha através do Orkut. A Marluce Stoll é médica e mora no Rio.


6 Segundo Tio Cláudio, ele atendeu convite do Sr. Quincas Saraiva, padrinho do mesmo.


7 A Boa Fé, possivelmente seja a estância "N.Sra.do Rosário", localizada na sesmaria do Capivari, como vemos no site A Grande Família: “A sesmaria do Capivari, já vimos, identifica-se com a estância "N.Sra.do Rosário", em Encruzilhada”. Neste site, são tratados pontos importantes da vida de Mateus Simões (nasceu em 1724 na Freguesia de São Sebastião, Ilha Terceira e faleceu com 95 anos de idade, de tifo, em 1819 em Rio Pardo). Embora pouco utilizado este é o nome do Distrito onde se localiza esta estância, avançando rumo a Oeste.


8 Diz a Helena que quando D. Doralice chegou ao Ranchão perguntou : “O senhor está brincando, não é mesmo, Dr. Stein?”Obs: o tratamento era formal entre marido e mulher naquela época.


9 ETAGÉRE: móvel para sala de jantar, com portas e gavetas laterais. Serve também como aparador.



10 Tolu: Árvore leguminosa, da subfamília das papilionáceas. Substância extraída dessa árvore e de emprego medicinal.


11 Nota da Elaine :

Tenho o último livro de registros da Farmácia do Vô Bartolomeu que me foi dado pele tia Flávia quando me formei na UFRGS. É uma preciosidade! Tem os registros das medicações para as filhas, estas sempre com anemia e magrinhas pelo teor do receituário! Tem também anotações sobre os doentes, se morreram, se fizeram cirurgia, quantos pontos levaram, quantos pontos devolveram! Eram pontos metálicos, os "Categut", depois der usados eram devolvidos e os perdidos eram então pagos ao Vô. Os pagamentos tambem eram os mais variados. Dinheiro, carne, galinha, porco, etc..


12 Autor: W. H. G. Kingston, Coleção Terramarear.

13 Tinta Sardinha: Anúncios do final do século 19 diziam que “Acha-se em todas as repartições publicas da corte e diversas províncias. Esta tinta é tão bela e seu traço tão uniforme, que convida o escritor a escrever”.

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