Taquara, 17-10-937.
Querida maninha Lieta,
Abraço-te e aos primos e Titia, com grande dor e saudade; a ti o meu grandessíssimo abraço na dor que ora nos une, a dor mais acerba que já sofremos! Calculo como deves estar preocupada com nossa sorte! ... Como deves estar inconsolável com a perda de nossa muito amada Mãezinha! Consola-te, Deus não quis que a tivéssemos mais anos, roubou-n’a tão cedo! Era tão moça e parecia tão forte...
Há quase um mês, ou mais, não te escrevia, nem sei como começar esta, depois de tudo o que aconteceu! Deves saber que tia Palmyra, tio Osvaldo, tio Juca e tia Deolinda foram até lá, nossos bons tios foram incansáveis, inclusive os vizinhos e seu Zeca, esta foi mais que nosso Pai; tudo fizemos para nossa Mãezinha; faleceu dia 13 às 7 horas da noite, dia 15 saímos de lá com os queridos titios e depois de mil peripécias chegamos aqui em Taquara, onde estamos com os titios que são nossos segundos Pais! São bons, muito bons!!!
Passamos um telegrama ai para vocês, porém nada recebemos, de resposta nem o cheiro!... Nem carta recebemos mais, desde que Mãezinha adoeceu, estranhamos muito a absoluta falta de notícias daí, eis porém que a querida Ruth escreve e manda dizer que tu passaste um telegrama pedindo notícias, lá, porém, não chegou.
Claudinho foi com o tio Osvaldo, ia muito satisfeito; separamo-nos e ele parecia não sentia muita falta nossa; tio Osvaldo e tia Deolinda foram com ele. Da Flávia não recebi ainda nada, imagino como não está inconsolável, ela que é tão amorosa!... Dia 15 recebi carta dela, pedia notícias da Mãezinha, ainda não sabia do triste acontecimento que nos feriu ainda nem respondi, pretendo escrever-lhe hoje.
Bem, agora vou passar a contar a doença de nossa Mãe, pois deves estar ansiosa por saber: Mãezinha adoeceu dia 26, à noite, teve um desmaio, que durou uma meia hora, afinal depois de muito óleo canforado e café bem forte veio a si, estávamos sós, com o Francisco; mas antes disso ela tinha tido gripe e um furúnculo horrível, creio que te mandei dizer, não? No dia 27 mandei chamar o seu Zeca Garcia, ele queria mandar chamar o Dr. Gastão, mas a Mãe não quis, alegando sentir-se bem, então ela mandou o Maurício à Encruzilhada buscar remédios, depois de um ou dois dias ela pediu o médico, foram ao telefone e chamaram o Dr. Gastão que prontamente veio e foi muito atencioso; constatou ser infecção do sangue, e um caso muito grave! Dr. Gastão foi até lá diversas vezes, Ozy sempre ia junto. Durante toda a doença a casa vivia cheia de gente, era até demais, todos queriam servir; foram incansáveis, coisa mesmo difícil de contar; seu Zeca, então, nem se fala!!! Injeções e remédios era um horror! Felizmente nada faltou, teve tudo a tempo e a hora, injeções quantidades, não se achava mais lugar para fazer uma! Estava também com reumatismo no pescoço e num braço, passou dores horríveis, insuportáveis; na cabeça pareciam máquinas, tão grande era o zumbido! Ela pedia muito um Padre, por isso e mesmo por achá-la mal, mandamos chamá-lo, não podendo vir o Padre Thomas Broggi, deu ordens ao da Encruzilhada, o qual veio dia 5, às 11 horas e administrou-lhe todos os Santos Sacramentos. Mãe ficou deveras contente e melhorou consideravelmente depois dos S. Sacramentos, rezou muito, depois piorou novamente, quase não falava, tendo já antes feito todos os pedidos e recomendações. Imagina nossa aflição, eu andava nervosíssima, pois via que ela estava mal, e mesmo não m’o escondeu.
Eu fiquei encarregada do tratamento tendo Dr. Gastão deixado escrito nas caixas, pois o tratamento todo constava de injeções, óleo canforado e nem sei o que mais! A temperatura nunca baixava de 39 a 40, dia 13 tinha 41 e 8, foi a última vez que tirei, nessa tarde ela ficou com o ventre inchado, sem fala, não conhecia mais ninguém, e às 7 horas faleceu, assistiram seu último suspiro: seu Zeca, Nário, seu Olimpo, D. Lida, à mim não deixaram entrar no quarto, mas eu vi que ela ia exalar o último suspiro, e de fato!...Há tempos desde que adoeceu não se dormia mais, apenas por noite uma, duas, três ou quatro horas no máximo, pois fazia-se “quartos”. Como aquele pessoal foi atencioso e serviçal!... Indescritível!!! Seu Timóteo e família, Edegar, seu Olímpio e fam., Cid e fam., Cecília, Vicente, etc... Pessoal do seu Bibi, enfim todos foram muito atenciosos, coisa nunca vista!
Nazico voava para trazer remédio; Maurício também ajudou muito.
As despesas foram fabulosas! Bem, já estou um pouco esquecida, e mesmo cansada, ainda tenho de escrever à Flávia, por isto vou parar um pouco.
Lá em casa deixamos tudo encaixotado, quer dizer tudo que vai se trazer para aproveitar; móveis fez-se uma relação que é para vender, ficou encarregado o seu Zeca de tudo lá. Deu-se muita coisa, aquele pessoal que tanto serviu era impossível cobrar. Enfim, foi uma tristeza; principalmente a pior coisa foi que tudo foi sem resultado, pois se tivéssemos ficado com nossa Mãezinha neste mundo, não tinha sido nada, mas Deus não quis que assim se desse, privou-nos dos doces carinhos, daquela nossa tão amada Mãezinha! Mas o que nos resta é consolar-nos com o que Deus determinou, achamos tios bons e serão pessoas que nos tem auxiliado e confortado! Deus os há de abençoar e fazê-los felizes!
Mãezinha perguntava muita por ti, se tu não vinhas, etc. respondíamos que ainda não, depois de ela muito perguntar e sempre recebendo negativa, disse: “pois então não pergunto mais, por ela, que sempre foi tão querida minha!”. Na Flávia falava muito! A toda hora! Deixou um pedido pra vocês: que cuidassem de nossa educação – era a única coisa que pedia a vocês, e que se conformassem, pois ela já estava conformada! – Pediu-me muitas coisas, fez-me muitas recomendações! Não me deixava sair do quarto nem um momento, logo que eu saia já ela me chamava e perguntava onde eu estava. Bem, maninha de minh’alma, vou terminar, já chega de prosa.
Peço-te aceitares com os bons tios e priminhos nossos saudosos abraços.
Aceita querida irmã, o coração cheio de dor e saudade da tua irmã e amiga que, como tu, sente a mesma dor.
Beija-te a tua
Maria
P.S.: Lieta,
Peço-te enviares este a Flávia, imediatamente haveres lido, pois não fiz descrição exata na carta para ela.
É favor.
Beijos
Maria
Observação: Fiz a transcrição de carta de próprio punho de minha Tia Maria Eugenia que, na época, tinha apenas 16 anos. Peço notar o português correto, onde fiz poucas alterações, apenas atualizando palavras que tiveram suas grafias alteradas posteriormente. Nada mais alterei Não notei quaisquer erros relevantes de português na bela caligrafia que ela tinha e tem ainda, e que em nada se alterou.
Notem, também, a descrição adequada que ela faz, os poucos recursos médicos que havia na época e, ainda mais, considerar que o local era totalmente distante de qualquer cidade, pelo menos 40 km. E havia muito poucos carros na época e no local, acredito, nenhum.
A maturidade de minha tia em assumir e tratar minha avó e em descrever, com absoluta fidelidade o mal que a acometeu (infecção do sangue: septicemia; pergunto: poderia ser também, alguma doença de origem meningocócica ?).
Carlos Eugenio Garcia